E
ontem à noite? Barulhos na cozinha. Fui ver, penas e sangue por todo
o lado. A macabra brincadeira já durava há largos minutos.
O
gato ainda não tinha morto a rola mas mastigava-lhe as asas. Ela
tinha o olho parado, estava imóvel, a fingir de morta, a pupila viva
como um grito. Tive de dar o golpe de misericórdia ao infeliz
animal. Fui buscar a pá da lareira e estrangulei-lhe o pescoço, de
cima para baixo, num movimento de guilhotina. Ela debateu-se na
aflição, esperneando até ficar sufocada. O gato aproveitou o
movimento para a puxar e ela soltou-se da espátula. Mas o esforço
depois de ter sido torturada pela cozinha (penas arrancadas e o chão
todo lambuzado de sangue). O esforço foi demais e o bicho morreu. O
olho, que em pânico brilhava com uma alma, uma luz, estava baço e
sem vida. (vi isto, da luz dos olhos a apagar-se, também quando o
meu avô morreu).
A
alma, a pneuma, essa vai rolando pelo mundo. Já o gato começou a
comer a ave morta. Comia com ganas, já não havia nada para brincar,
e depois da morte tem que se comer rápido antes do envenenamento da
podridão. Eu peguei no bicho morto e meti-o na rua, juntamente com o
gato. Na manhã seguinte o corpo havia desaparecido. E as formigas
atarefavam-se, em filas de supermercado, de volta da cabeça e das
patas que estavam a encaixar no vazio, onde tinha sido o corpo.
Uns
morrem, outros vivem.
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