3.7.08

evocação de luis miguel nava


Poucos poetas são tão impressionantes como Luís Miguel Nava. A maior parte da poesia no mundo é aborrecida, desinteressantes ou produto da estética de uma alforreca. Outra tem por trás "belos sentimentos", mas como diz Harold Bloom, algures no "The Western Canon", o mundo está cheio de maus poemas com bons sentimentos. De qualquer não sei se a poesia de Nava fala de sentimentos, às vezes nem sei do que fala. Não é uma poesia em que o sentido seja o fulcro da poesia. É qualquer coisa mais. Ou menos. É uma força na linguagem. Um corpo de escrita que se contorce e grita à nossa frente.
Como escreveu Gastão Cruz no prefácio a "poemas": trata-se da única presença verdadeiramente forte e diversa afirmada no panorama português dos anos 80." [1]
A morte fecha-se sobre o autor para completar a obra. Só com a morte é que a obra está completa e mesmo assim talvez não, que uma obra viva continua a atrair sobre si textos e comentários que nunca a chegam a explicar, como é o caso deste texto. A leitura dos poemas de Nava tem sobre si essa terrível sombra: a da sua morte. Uma morte violenta, quando o poeta era adido cultural em Bruxelas, tendo sido encontrado morto e amarrado a uma cama e esfaqueado furiosamente. O que é mais bizarro é a sua poesia parecer ser uma profecia desse acontecimento. (e, como todas as profecias, é só concluída agora, à posteriori). Há uma sentença dele que reza assim: "Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras". E que é corroborada anteriormente no texto/poema "xadrez": "Trazem então consigo uma vontade imensa de jogar, de abrir de novo as vísceras, mostrar por dentro o corpo, esse magnífico xadrez de que o trabalho dos meus órgãos equivale à sucessão dos lances". Por vezes quadros semelhantes são construídos de uma forma quase nietzchiana, quase podemos ver o Zaratrustra neste inesquecível trecho: "Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animas à minha volta pendiam degolados fosse o meu".
A presença constante das entranhas, das vísceras, que às tantas funcionam como uma interrogação acerca do próprio corpo, porque nós não vemos para dentro, porque o interior do nosso corpo é como o chão do fundo do oceano, a despeito da propaganda da anatomia médica que diz que todo o território interior é conhecido e cartografado. O que são as entranhas? O desconhecido, o interior, o por desvendar.
Sim, porque muitos dos seus poemas não são semioticamente alinhados à esquerda como é costume para se identificar os poemas. Muitos deles são em formato de pequeno texto em prosa mas as suas qualidades estilísticas, temáticas e linguísticas facilmente nos indicam que estamos perante um poema. Não é preciso saber nada de estudos literários para reconhecer a poesia onde quer que ela se encontre. Devo falar de uma qualidade que é característica dos textos deste autor: a da brevidade. Há uma depuração profunda nos seus textos, embora tenham uma reverberação expressionista, lembrando obrigatoriamente a pintura de Francis Bacon. Essa depuração é estranha. Porque parece que assistimos ao mesmo tempo a uma poesia de grande irrupção verbal mas ao mesmo tempo aparada por uma grande consciência da linguagem, lembrando a liçãodos poetas da "Poesia de 61", com o seu cultivo verbal auto-consciente. O seu profundo sentido do texto como objecto linguístico.
Só o título de um livro seu, "O céu sob as entranhas", é impressionante. O que é que um título destes quer dizer? É uma afirmação carniceiramente teológica? Deus debaixo de uma formação meteorológica de vísceras? Ou o mundo sublunar como cloaca máxima?
Num dos seus livros a depuração chega a um extremo, é na "inércia da deserção", em que os poemas nos aparecem já só como esqueleto. Despojados de toda a carne das palavras que ainda restava. Tornam-se assim textos próximos do Haiku, numa brevidade e densidade absolutas: "... como se a manhã me tivesse escolhido a mim para tomar consciência de si própria."[2]
Há movimentos de humanização de elementos inanimados que chegam ao grotesco, numa indiferenciação entre o interior e o exterior do corpo, como se as fronteiras não fossem a pele mas algures mais longe ou algures mais perto, uma espécie de esquizofrenia do corpo, o corpo pode estar algures, o nosso ou o de alguém. "um dia olhando o sol, deu conta que nele tinha os ossos mergulhados". "A pele ia imitando o céu como podia". "A sua carne exercia aliás uma enigmática aração sobre as estrelas, qu eem breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes (...)".

...mar, pele, coração, entranhas, memória...

Mas deixemo-nos de garatujar palavras sobre ele e deixemos o poeta falar:

"Entranhas

O céu descaí; agora que alguém fez
dos nossos corações refinarias,
o fumo irrompe dir-se-ia
que cheio de emoção das chaminés.

Aqueles a quem servem de entranhas as da terra
mal podem deslocar-se; até já não
haver céu contra o coração,
sobre eles põe subterrâneas nuvens o petróleo."



Esta evocação do poeta foi feita com base nestes dois livros:
NAVA, Luís Miguel Nava, "O céu sob as entranhas", Limiar, Porto, 1989.
NAVA, Luís Miguel Nava, "Poemas", Limiar, Porto, 1987.

[1] E, diria eu, nos anos 90 talvez a única voz particularmente interessante seja a de Jorge Sousa Braga ou Walter Hugo Mãe, mas isso não vem agora ao caso.

[2] não deve ser por acaso que um dos poucos autores citados nos poemas de Nava seja Bashô.

2 comentários:

Anónimo disse...

De realçar a importância do haiku na poesia do Nava. O ensaio dá vontade de conhecer o autor e isso é muito bom.

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Fui amiga dele,em Viseu e frequentadora da sua casa,na rua Direita...