
a moagem era bela a moagem
com as suas janelas verdes quadradinhos-vidro
com o seu pé direito alto de girafa
e com as suas maquinetas de madeira
e articulações de aço
eu não vi a moagem a trabalhar
morreu pela primeira vez talvez
nos anos quarenta nem sei
mas passei tantas tardes
dentro desse edifício agro-industrial
que pensava que ele também era eu
e as máquinas paradas
eram fantasmas do movimento,
o caruncho ia mastigando as madeiras
e os silos,
enquanto as partes de ferro fundido
davam um ar expressionista à inactividade
como se estivessem as máquinas
estupefactas e sem trabalho
gostava particularmente das roldanas
das rodas dentadas,
do silêncio
e do pó
passei a infância
na solidão e no sonho
em sítios como aquela moagem
por vezes subia ágil
pelas condutas acima até aos silos
e ficava escondido a observar o silêncio
(como se fosse um pequeno animal furtivo)
este sítio foi demolido
só ficou um rasto de roldanas
paradas na minha memória
aquele sítio era uma cetedral industrial
de madeira e de cheiros secos e cereais
e tinha uma dignidade de teatro
ou de fóssil
este sítio foi demolido
e tenho pena de nunca nele
ter beijado uma mocinha
de espigas loiras como tranças,
bem, agora já não importa
já tudo foi demolido
mas ficou a recordação doce
daquele sítio que já morreu
