31.7.08

nervos e esperança


hoje não me apetece estar triste. Nem me apetece ser sepultado pela depressão. Há muitas coisas boas na minha vida. Não encontrei Cristo nem nenhum outro deus estropiado que me desse sopas soteriológicas. encontrei-me tranquilo, pelo menos hoje, ao menos hoje.
gostava de ajudar os outros. vou-me virar para os amigos e para as amigas e tentar contribuir para que eles aguentem melhor a existência. Não tenho jeito para madre teresa ou qualquer outra bizarria, no fundo tão perversa, egoísta e psiquicamente doente. amanhã vou estar com pessoas porque sozinho passo-me completamente da marmita.
não sou nenhum deus, gostava é claro, cada um de nós tem em si o sonho totalitário de ser deus, sou apenas um ser humano limitado e cheio de defeitos mas ao mesmo tempo cheio de capacidades e de projectos e de sonhos de coisas para realizar.
já sofri psiquicamente muito. talvez venha ainda a sofrer no futuro. porque temos que morrer teremos sempre de sofrer algures no futuro nem que seja na hora da nossa morte. mas pensar nisso não serve de nada. é melhor nem tentar pensar nisso. estava eu a dizer que já sofri psiquicamente muito mas que quando isso acontece me torno mais narcisista e é tão esquisito e empobrecedor sofrer.
a minha arte, a da escrita, está cheia desses sentimentos transtornados. não sei porque se escreve melhor quando se está triste ou doente dos nervos, regra geral escreve-se bem melhor do que quando se está bem. talvez porque (eu pelo menos gosto de pensar nisto assim) a arte funciona como uma auto-terapia, terapia esta que pode muita vezes não resolver nada mas muitas pelo menos serve como paliativo, o que já não é nada mau. quando se escreve a palavra “suicídio”, pelo menos, não estamos nesse instante a dar vida a essa palavra, e estamos a delegar para o papel esse horrível pensamento. muitas vezes me apeteceu, levianamente talvez, matar-me e outras tantas me apeteceu matar as pessoas que encontro na rua ou que conheço. não sou nenhum santo idiota para fingir que não tem maus fígados de vez em quando.
não temos obrigação de estar sempre felizes. temos direito a estar revoltados ou tristes ou a ferver de raiva ou outra coisa qualquer. e também temos o direito de, até por aceitar estes nossos estados, fazermos um trabalho psíquico sobre eles. tentando nos conhecer menos mal, para nos aceitarmos um bocadinho mais. para tentarmos sair deles. sabe-se lá de que maneira. não, não há nenhuma razão metafísica para sairmos deles. somos nós sozinhos com a nossa condição humana. não devemos censurar totalmente aqueles que só conseguem lidar com isso com deus ou com outro tipo de estupefacientes. somos todos caguinchas quando toca a existir. e, em termos de viver é sempre mais fácil deixarmo-nos derrotar. deixarmo-nos comer pela depressão tem qualquer coisa de protector, ficamos regressivamente no nosso casulo de tristeza.
se calhar temos que a obrigação moral, perante nós próprios de tentar agir, de tentar melhorar a nossa vida, de crescermos espiritualmente. porque sim, sem qualquer justificação metafísica ou qualquer religião grotesca e paranóica como a do nazareno...
mas porque é que existimos? ninguém sabe. ninguém me responde a esta questão. ah, que se foda, quero é viver!...
de qualquer das maneiras a esperança é uma palavra gravemente foleira mas eu estou-me completamente a cagar que seja foleira porque hoje, ainda que seja só hoje, tenho esperança.

23.7.08

o túmulo de um deus


falésias apinhadas de electricidade
um homem numa caverna
tocando saxofone
o coração está suspenso
entre o horizonte e o sonho
dedos investigam a areia

o ser para a morte
desenhos e riscos acerca de nada
um cargueiro que agoniza no porto
arco-íris e limão sobre sarcófago
duas ou três luas submarinas
solenes palmeiras, quilómetro a quilómetro
convalescença com figura humana
nunca chegar a conhecer
perder os tornozelos, abdicar
laranja, nascer do sol, túmulo

medo das doenças
tantos caminhos, tantas soluções
cornijas, albatrozes, raízes,
respirar antes do sonho
levitar por cima dos prédios
desistir para poder descansar

3.7.08

autoretrato


evocação de luis miguel nava


Poucos poetas são tão impressionantes como Luís Miguel Nava. A maior parte da poesia no mundo é aborrecida, desinteressantes ou produto da estética de uma alforreca. Outra tem por trás "belos sentimentos", mas como diz Harold Bloom, algures no "The Western Canon", o mundo está cheio de maus poemas com bons sentimentos. De qualquer não sei se a poesia de Nava fala de sentimentos, às vezes nem sei do que fala. Não é uma poesia em que o sentido seja o fulcro da poesia. É qualquer coisa mais. Ou menos. É uma força na linguagem. Um corpo de escrita que se contorce e grita à nossa frente.
Como escreveu Gastão Cruz no prefácio a "poemas": trata-se da única presença verdadeiramente forte e diversa afirmada no panorama português dos anos 80." [1]
A morte fecha-se sobre o autor para completar a obra. Só com a morte é que a obra está completa e mesmo assim talvez não, que uma obra viva continua a atrair sobre si textos e comentários que nunca a chegam a explicar, como é o caso deste texto. A leitura dos poemas de Nava tem sobre si essa terrível sombra: a da sua morte. Uma morte violenta, quando o poeta era adido cultural em Bruxelas, tendo sido encontrado morto e amarrado a uma cama e esfaqueado furiosamente. O que é mais bizarro é a sua poesia parecer ser uma profecia desse acontecimento. (e, como todas as profecias, é só concluída agora, à posteriori). Há uma sentença dele que reza assim: "Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras". E que é corroborada anteriormente no texto/poema "xadrez": "Trazem então consigo uma vontade imensa de jogar, de abrir de novo as vísceras, mostrar por dentro o corpo, esse magnífico xadrez de que o trabalho dos meus órgãos equivale à sucessão dos lances". Por vezes quadros semelhantes são construídos de uma forma quase nietzchiana, quase podemos ver o Zaratrustra neste inesquecível trecho: "Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animas à minha volta pendiam degolados fosse o meu".
A presença constante das entranhas, das vísceras, que às tantas funcionam como uma interrogação acerca do próprio corpo, porque nós não vemos para dentro, porque o interior do nosso corpo é como o chão do fundo do oceano, a despeito da propaganda da anatomia médica que diz que todo o território interior é conhecido e cartografado. O que são as entranhas? O desconhecido, o interior, o por desvendar.
Sim, porque muitos dos seus poemas não são semioticamente alinhados à esquerda como é costume para se identificar os poemas. Muitos deles são em formato de pequeno texto em prosa mas as suas qualidades estilísticas, temáticas e linguísticas facilmente nos indicam que estamos perante um poema. Não é preciso saber nada de estudos literários para reconhecer a poesia onde quer que ela se encontre. Devo falar de uma qualidade que é característica dos textos deste autor: a da brevidade. Há uma depuração profunda nos seus textos, embora tenham uma reverberação expressionista, lembrando obrigatoriamente a pintura de Francis Bacon. Essa depuração é estranha. Porque parece que assistimos ao mesmo tempo a uma poesia de grande irrupção verbal mas ao mesmo tempo aparada por uma grande consciência da linguagem, lembrando a liçãodos poetas da "Poesia de 61", com o seu cultivo verbal auto-consciente. O seu profundo sentido do texto como objecto linguístico.
Só o título de um livro seu, "O céu sob as entranhas", é impressionante. O que é que um título destes quer dizer? É uma afirmação carniceiramente teológica? Deus debaixo de uma formação meteorológica de vísceras? Ou o mundo sublunar como cloaca máxima?
Num dos seus livros a depuração chega a um extremo, é na "inércia da deserção", em que os poemas nos aparecem já só como esqueleto. Despojados de toda a carne das palavras que ainda restava. Tornam-se assim textos próximos do Haiku, numa brevidade e densidade absolutas: "... como se a manhã me tivesse escolhido a mim para tomar consciência de si própria."[2]
Há movimentos de humanização de elementos inanimados que chegam ao grotesco, numa indiferenciação entre o interior e o exterior do corpo, como se as fronteiras não fossem a pele mas algures mais longe ou algures mais perto, uma espécie de esquizofrenia do corpo, o corpo pode estar algures, o nosso ou o de alguém. "um dia olhando o sol, deu conta que nele tinha os ossos mergulhados". "A pele ia imitando o céu como podia". "A sua carne exercia aliás uma enigmática aração sobre as estrelas, qu eem breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes (...)".

...mar, pele, coração, entranhas, memória...

Mas deixemo-nos de garatujar palavras sobre ele e deixemos o poeta falar:

"Entranhas

O céu descaí; agora que alguém fez
dos nossos corações refinarias,
o fumo irrompe dir-se-ia
que cheio de emoção das chaminés.

Aqueles a quem servem de entranhas as da terra
mal podem deslocar-se; até já não
haver céu contra o coração,
sobre eles põe subterrâneas nuvens o petróleo."



Esta evocação do poeta foi feita com base nestes dois livros:
NAVA, Luís Miguel Nava, "O céu sob as entranhas", Limiar, Porto, 1989.
NAVA, Luís Miguel Nava, "Poemas", Limiar, Porto, 1987.

[1] E, diria eu, nos anos 90 talvez a única voz particularmente interessante seja a de Jorge Sousa Braga ou Walter Hugo Mãe, mas isso não vem agora ao caso.

[2] não deve ser por acaso que um dos poucos autores citados nos poemas de Nava seja Bashô.