27.11.05

a moagem do meu avô


a moagem era bela a moagem
com as suas janelas verdes quadradinhos-vidro
com o seu pé direito alto de girafa
e com as suas maquinetas de madeira
e articulações de aço

eu não vi a moagem a trabalhar
morreu pela primeira vez talvez
nos anos quarenta nem sei
mas passei tantas tardes
dentro desse edifício agro-industrial
que pensava que ele também era eu

e as máquinas paradas
eram fantasmas do movimento,
o caruncho ia mastigando as madeiras
e os silos,
enquanto as partes de ferro fundido
davam um ar expressionista à inactividade
como se estivessem as máquinas
estupefactas e sem trabalho

gostava particularmente das roldanas
das rodas dentadas,
do silêncio
e do pó

passei a infância
na solidão e no sonho
em sítios como aquela moagem

por vezes subia ágil
pelas condutas acima até aos silos
e ficava escondido a observar o silêncio
(como se fosse um pequeno animal furtivo)

este sítio foi demolido
só ficou um rasto de roldanas
paradas na minha memória
aquele sítio era uma cetedral industrial
de madeira e de cheiros secos e cereais
e tinha uma dignidade de teatro
ou de fóssil

este sítio foi demolido
e tenho pena de nunca nele
ter beijado uma mocinha
de espigas loiras como tranças,

bem, agora já não importa
já tudo foi demolido
mas ficou a recordação doce
daquele sítio que já morreu

18.11.05

gineceu

hoje sonhei
que estava com três mulheres
reclinado em almofadas,
rei no gineceu,
a apalpar-lhes os seios
as ancas, os rabos,
os cabelos e as vulvas,
sedado
pelos aromas que das fêmeas
saem

eu, que ninguém tenho,
(e talvez por isso mesmo)
sonhei que era proprietário
de três fêmeas

deito-me portanto para ser recebido
por paisagens oníricas
(e mulheres que me aceitem)
e enquanto isso, o sono, não acontece
deito-me no colchão no chão
e observo de baixo para cima:
(e observar rente ao solo
é como se voltássemos à infância)
observo a mesa de elefantes
dedicada a shiva
os sofás duma lisboeta casa antiga
as paredes com restos de mecanismos
as minhas plantas pujantes e verdes
as minhas estantes com livros
o calor do meu corpo e o conforto
os sofás castanhos e antigos e lisboetas
este quarto escritório tão seguro
como se fosse a infância que tive
como se fosse invulnerável
e pudesse sorrir ao futuro

deito-me aqui para sonhar
com mulheres, ou com aquela mulher
adolescente e de rosto de criança
com quem tive uma bela conversa
no outro dia

e sempre com a sensação negra
de a ela não poder ter direito
como se eu fosse um túmulo vivo

e enfim, sonhei-me com três mulheres
eu que nenhuma tenho
e ao acordar depois disso
masturbo-me mais uma vez
e depois fico a olhar para o tempo no tecto
as suas sombras
as suas fracturas no estuque
e uma ou outra aranha
octopernada
e vagarosa
a passar

8.11.05

pigmalião


um dia, sim, um dia
vou voltar a pintar, talvez,
agora sem pretensões
nem parvoíves conceptuais

por isso é que desisti da pintura
porque estava preocupado
com a aura da arte e do artista
balelas
além de que não tinha talento
mesmo

foi só quando desisti
é que me realizei o meu melhor quadro:
está ali, ela, a olhar para mim
com os seus profundos olhos da prússia
de vermelhos lábios e lábios menina
a pele rosada e lisa, as maçãs do rosto,
as curvas do pescoço e do queixo,
o rosto que apetece percorrer com a ponta
dos dedos ou com as narinas respirando-lhe a pele
até à base do pescoço, as clavículas,
o começo do peito, a pele

esta ali, ela, a olhar para mim
com as suas discretas orelhas de elfo
um seu o cabelo comprido apanhado atrás
um seu o pescoço tão modigliani
um seus os seus lábios carnudos
e tão profundamente sexuais

num sorriso tranquilo
benevolente, de quem me aceita,
ela está ali a olhar,
a sorrir, antes de sorrir
mesmo

está ali, ela, a olhar para mim
um dia, sim, um dia
vou perder o medo,
vou agarrá-la pela nuca
com ambas as mãos
e beijar os lábios dela
com toda a força

e dela recuperar o amor
que não chegou a chegar

2.11.05

a força e a matéria


primeiro
a força e a matéria
eram as coisas que existiam

depois a matéria sofreu
uma doença

a isso se chamou
"a vida"