30.8.05

clorofilia





eu sou a chuva,
entre os pinheiros nocturnos e calmos
a caruma e as estrelas no meio das copas,
eu sou a chuva a horas tardias
noite-jardim, de mangueira em punho

brincando e fazendo curvas
com o jacto de água que sai...
do ponto de vista do jardim
eu sou a chuva

as gotículas agarram-se às folhas
os aromas desprendem-se das plantas
molhadas

alfazema, hortelã, cidreira
canteiros que são ecossistemas
plantas silvestres,vasos

brincando e fazendo curvas
com o jacto de água que sai:
eu sou a chuva!

21.8.05

candeeiro, madrugada



a luz é insidiosa, silenciosa,
os olhos de um filósofo
olham-me numa gravura
a meio caminho de ser comida
pela humidade e pelo desagregar do
tempo

a aparelhagem e os seus botõezinhos
cinzentos, tecnológicos, complexos
lembram-me as promessas da adolescência
que não chegaram a ser
cumpridas

o padrão da carpete
esconde famílias, pegadas
de pessoas passadas,
pessoas que morreram à pouco
mas que morreram tão
irreversíveis

eu também tenho morrido
e de vez em quando
tenho morrido asfixia
com os objectos espalhados pelo quarto
que naufragam
pelo chão
adentro

18.8.05

depois de darwin



a gata rebola-se na carpete
com os seus olhos extraterrestres
rebola-se nos meus dedos
quase pornográfica

com uma imensa ternura
com as garras recolhidas
e com a sua espinha dorsal
serpenteando nos meus braços
dormimos juntos
numa meiguice e amizade
inter-espécies

e de madrugada,
corremos atrás dos ratos,
e é certo, saudável e científico:
só os mais fortes
sobrevivem

14.8.05

las meninas*



as meninas banham-se nas
másculas ondas, atravessam-nas
leves com os seus corpos dinâmicos
propulsionadas por fortes coxas

as adolescentes de deliciosos biquinis
parecem focas furando
as ondas de água muralhada
com as ancas a deslizarem
aquáticas no mar e cheias
de vida

desviam-se das turbulentas ondas
ágeis e femininas, difíceis de agarrar,
fortes e férteis, curvilineas como violinos,
e os lábios cheios de sangue

e olho paralisado na toalha
para o mar dentro delas


* o livro "les mots et les choses", de michael foucault, começa com um capítulo sobre o lugar do eu e da perspectiva (ou qualquer coisa do género) sobre um quadro de velásquez intitulado`"las meninas". todos os textos meus que tiverem este título referem-se subrepticiamente a esse capítulo (digo eu, sei lá).
a pintura do mar com umas miudas debaixo de água é do gerhard richter.

8.8.05

o som e o silêncio



o rádio a pilhas
com música clásscia dentro
chamusca o ar de violinos
fanhosos e árias com interferências

situo-me na horizontal,
imaginando o barulho do rádio,
se estivesse ligado

e oiço de memória
várias melodias de vários compositores
que amo com maravilhamento,

a música é uma dádiva
e quando estamos noite dentro
em profundo silêncio
podemos ainda ouvir a reverberação
dos acordes e das sinfonias
ainda a ecoarem nas profundezas
das células

só, e em silêncio,
é que se pode escutar
pela memória, a verdade
da música

4.8.05

os vasos de flores

são vários vasos de flores
plantas que se exprimem
em folhas dentadas,cores
invisíveis, caules cartilaginosos
carnudos e cheios de seiva

deito-lhes um pouco mais
de água do que devia, para
ver os fundos e cogumelos
brotarem nas cascas podres

as flores da minha janela
engolem muito sol e espreitam
lá para fora como se quisessem
fugir de casa, as folhas são cheias
de veias verdes, cheias de arames
e teias de veias verdes

os meus vasos de flores
brotam por entre as paredes
e eu sorriso para elas