31.8.03

vanitas

agora que vou morrer vejo o aço acumulado que culpa minha. agora que vou morrer vejo para além de tudo o que me disseram. vejo que o meu eixo sempre esteve errado. desde aquele acordar cirúrgico. infantil. desde aquela curva peristáltica, depois da comida a apodrecer no estômago. depois daquele momento da expulsão do sangue. em que pensei, será ainda possível vivermos?, e depois em vez de uma morte gloriosa ficamos cão à espera, do avesso da catedral, à espera em evaporação que

30.8.03

falésias de xisto

um sol tirado de dentro de um livro de fábulas. uma longa viagem bípede pelas falésias. os reflexos de cristal na chapa ondulada do oceano. os sons das árvores e do marulhar do mar tranquilizando. um barco patrulha, cinzento, a procurar nos meandros da costa. o jipe da policia marítima, populares excitados a olharem lá para baixo, para as rochas afiadas.(como é bom estar vivo num belo dia de verão, um dia sem pressão arterial como este, a passear despreocupado pelas belas falésias de xisto)...

übermensch

alguém disse uma vez que depois de auschwitz era impossível escrever poesia. foi simpático dizer isso.

28.8.03

o sangue mais forte

há qualquer coisa de estranho. de assimétrico no teu olhar. uma paisagem esgotada, sem daguerreótipo nem futuro. uma paisagem esgotada. a inumação do que vais dizendo. o desfolhar oncológico das tuas palavras.a inumação do que vais dizendo. a desarmonia com que sempre me surpreendes. sobretudo a irritação e o muro onde assassinamos animais a um deus inquieto e traumatizado. (...) o céu aproxima-se, criança perturbada, as cordas a pedirem-te escoriações. (...)
um monstro dentro de ti, um monstro inconsciente, sonâmbulo, balbuciante, a subir abrupto como os ovos da sida na tua ansiedade. (...) uma sirene ao longe, batráquios e artilharia atolados num lago. a paixão pela morte. a ferrugem e o bolor. as máquinas grandes paradas. dramáticas como uma escultura clássica. o sangue que pulsa. o sangue que faz pressão por todo o corpo. que procura um ponto frágil por onde escapar. (...) um universo de linfócitos, de interrupções, de plaquetas, e glóbulos cheios de oxigénio. o sangue que se despeja como uma máquina de destruir cereais. a ansiedade dos prisioneiros, recebendo ao colo o seu próprio massacre. a estimulação química do cérebro. para provocar uma reacção. a estimulação violenta do corpo. a estimulação contra-natura das massas. para provocar uma reacção. a falta de ar, a bomba asmática, a geringonça a arfar dentro do poço. o asfalto. a divisão da propriedade. os muros que reticulam a imaginação. e o sangue à espera, o sangue a olhar com sentimento paradoxais. a asfixia. os prisioneiros de guerra que esperam, com o seu sangue a cristalizar e a rebentar com o corpo. a falta de ar. a ansiedade. o esgotamento nervoso. agora só a dor pode curar. agora só a dor pode fortalecer o sangue. agora só a dor pode curar. que venha um deus do sofrimento para que (...) e a parede onde sacrificam os animais chama-nos. e o húmus desenvolve-se através de caminhos ogivados. e um poço profundo no neo-córtex. uma paisagem de magnésio. fluorescente, onde grilos hertzianos pululam, sintonizando o teu espanto. (...) e essa agora tão profunda através do crânio, essa falta de pensamentos. essa repugnância de insectos. essa luta pelo sangue mais forte. essa ansiedade de pirâmides. (como um faraó feito de luz e de matéria) esse deslizar complanado pelas tuas células. a inundação do sangue aos teus órgãos, como um estremecimento de aqueduto, como uma artéria a estrangular uma árvore, como uma flor excessiva, como uma clorofila canibal, como uma caneta a penetrar na massa muscular, como uma tontura, como o húmus debaixo do fervilhar sarcástico, como as faces paradas a olhar, como a claustrofobia do sangue, como as urgências de um hospital, como o abuso de medicamentos, como o reflexo inquieto da garrafa, como um gesto definitivo, como uma palavra de bronze, como quando as pessoas têm segredos sórdidos a mancharem-lhes as calças, como a purificação do sangue na hemodiálise, de qualquer das maneiras algum dia tinha que ser, de qualquer das maneiras teve que ser, a descompensação, o desiquilíbrio, as vozes divergentes, e díspares (...) algum dia tinha que ser, o doente mental que ergue um império na cabeça da sua loucura, apenas com a força do seu sangue, com a sua voracidade obsessiva-compulsiva, os fuzilamentos voluntários, a fonte de onde escorregam os corpos das almas, como um receio não justificado, como quando procuramos a salvação, quando procuramos o deus do sofrimento, como quando há um caminho de fábulas e as estrelas estão atentas, como quando nos refugiamos num castelo de alcóol. para esquecer o sangue mais forte. em seteiras bebidas até ao fundo do copo.

26.8.03

o deus da doença

um império se desenha, com o ar raízes dos dentes a enraízarem-se no escudo continental. extractos mais profundos. radiações das pegadas de outra gente. os ecos de batalhas, absorvidas pela rocha que se desagrega com a erosão. a limonite, a ferrugem das pedras, a lixiviação das rochas épicas. a radiação de outras gentes que impregnam o solo e os aquíferos. os pés que se afundam nos canos dos perónios. que se encharcam no passado. a rua do raio. a aurora dos decapitados. a dificuldade em andar. o som que se propaga nas ruínas. o coração que ainda não parou. (...) a multiplicidade de tudo, dos caminhos que se bifurcam. da distância entre as pessoas, dos universos que se afastam, do crónico cansaço, da mania em sonhar, (...) um deus da doença, um deus do sofrimento e da desagregação, os tubos coronários, a espetarem-se corpo fora, a derramarem o sangue, bacias hemográficas, com barragens osteoformes, e o deus da doença. (...) estradas mais profundas, sulcadas por vagabundos errantes e aleatórios, que se locomovem até cairem na estrada. estenuados de cansaço e sem interesse pela vida, expressionistas, absurdos no seu sentir e viver. deitados de costas, a olharem para cima, a pupila paralisda, hipnotizados pelo cadáver do céu, à espera que o deus da doença os leve.

25.8.03

citoplasma

um lago com uma mulher triste. os pensamentos como uma máquina de lavar. quando te encontrei talvez fosses uma estátua. ou uma ideia abandonada sob escombros. (...) no chão jazia o esqueleto de uma catedral. com aquela brancura do osso característica, com a porosidade da morte. um pântano como uma mulher sem filhos. os pensamentos arrancados do chão com uma retro-escavadora. o martelo pneumático. a dinamitação dos teus olhos. uma ideia abandonada sob os escombros, sob o entulho. (...) o coração prematuro. crucificado no próprio esterno. um bosque gregoriano, com restos de civilizações perdidas. um altar carbonizado, uma tumba com as tripas de fora. marte aproxima-se, a decadência do ocidente (...) quando te encontrei pensei que eras um bocado de pedra sagrada. fui-me apercebendo lentamente do teu rosto através dos séculos e dos espelhos, através de um nevoeiro de cimento. o teu rosto era um espiritismo nocturno. um espiritismo nocturno e através da pedra vê-seum lago, onde uma mulher se despe em arcanos. e no chão jaziam despojos humanos e os restos de uma catedral. (...) quando te encontrei pensei que eras um organismo num mecanismo. estava á procura de te encontrar. memso não sabendo que eras. à procura de conquistar algo inexpugnável, tão belo como uma arma, (...) um bosque onde se perde a esponja dos pensamentos. o encéfalo em estrutura de bolor, o vento e os esporos. um espelho de cartilagens onde escavas galerias à procura do marco geodésico da alma, à procura do coração do coração.

24.8.03

a questão judaica

todos os dias cristo é entregue pelos judeus aos romanos.

23.8.03

antropofobia

a cabeça em cacho de flores. pendurada pelo pescoço, suspensa no ar. do tecto do céu até quase ao chão como um candelabro fantasma. os seus movimentos regulares, sinusoidais, sobre si própria. como quem diz que sim e que não ao mesmo tempo. (...) uma inquietação de insecto, os gânglios do mar, um cancro linfático (...) e a cabeça era uma alucinação de pétalas. e eu estava a vê-la como se fosse uma floresta em armas. com o espanto de cervicais lesionadas. susupenso no ar, e eu a falar com ele, com um arbusto. um frio de paralisia, um frio de espiritismo. um arbusto cujo comportamento parecia uma pessoa. (...) esfregar os olhos de cansaço e encontrar a própria caveira (...) para tar a perceber que tava a falar com uma cabeça de clorofila. e movia-se sobre o seu próprio eixo. foi quando percebi que há objectos que têm pessoas lá dentro.

18.8.03

aurea mediocritas

a paisagem podia ser assim como um estuário. como quem vê isso de um ponto mais alto. dentro da terra havia segredos. como se fossem mortos que tivessem levado mapas do tesouro com a sua morte. havia o remorso por cima do húmus. havia o remorso como se tivessemos crimes escondidos dentro das nossas moléculas. (...) eu esforcei-me, dentro do ar, quando há os segredos da matéria. em melodias mórbidas. procurando ressuscitar a energia. eu esforcei-me dentro das sete paredes do sonho. e depois a paisagem não é o paraíso.é apenas uma gaivota doente que voa eco por entre as nossas membranas. e eu juro pelo fogo e pelo espaço. (tava ali no banho de imersão, com uma pedrada gloriosa, e a questionar-me. se as pernas que se moviam debaixo de água eram minhas. tinham que ser minhas, porque não estava mais ninguém em casa, e como não podiam ser de mais ninguém tinham, por exclusão de partes, de ser minhas.... mas fiquei que tempos a puxar pela cabeça e a estranhar aqueles pés de batráquio)..................................(estar vivo é positivo. nem que seja para assistirmos do camarote às desgraças e absurdos que nos servem de entretém)...

17.8.03

eros

todas as coisas que fizemos juntos e foram inúteis.

16.8.03

o centro do sangue

(aconteceu tudo exactamente como se acreditasse no que escrevo): há uma galáxia que é o centro do sangue. e estava na praia quando uma estrela cadente que até pensei que alguém atirasse um projéctil. as estrelas eram uma marcha triunfal, para a doença e para a morte. (...) um sonho, forrado a aço, como uma angústia militarista ou uma camisa castanha. uma mesa niilista onde se apoiam os cotovelos esfolados. e eu estava deitado no chão, na praia, de noite, quando o quadro negro se riscou giz com um sinal do céu. e há uma galáxia que é o centro do sangue. um sonho sepultado sob uma laje de betão. o céu mostrou-me que dentro do sangue há um sangue ainda mais profundo.

14.8.03

ofídeo

enrola-se no ar, a carne dos sentimentos pardoxais. os tam-tam prosseguem num ritmo forte e estupefaciente. a melopeia é sinistra, autista e encantadora. com um fogo geológico a sair das pedras. o êstase na modorra, no inconsciente. o esgotamento nervoso, o fumo xamânico, os gestos repetidos até à exaustão. o grande sonho de embriaguez que se sobrepõe à vida dita real. (...) seria bela essa embriaguez agora, para poder voar.

gnose

as coisas que são feitas e que nunca serão ditas. as coisas que foram pensadas e que nunca foram feitas. a caixa secreta, mantida em subterrâneo como tantos outros milhares de anos. milhares de anos em caves aproveitando o húmus da superfície que irrigava abóbodas de cálcareo. (...) a disciplina era a do silêncio e do remorso. os ossos eram enfiados na terra, espetados como uma pessoa a passar na rua. os altares inconscientes onde depositamos oferendas, libações e ex-votos (...) accionar um mundo. a vegetação rasteira, rosnando ctónicas ameaças. o princípio da vida e do nada. estátuas sado-masoquistas, anunciando a salvação. e o enorme poder de um deus desconhecido e sanguinário .

12.8.03

gólgota

olha-se lá para fora. era suposto tar aqui uma marquise envidraçada para se poder olhar lá para fora. uma paisagem ampla, grandiosa e esfarrapada. és a lua, a bater-me na janela?, com pequenas pedrinhas nos estores?, (...) não se consegue olhar de outra maneira hoje. as coisas não são assim, naufrágios domésticos, no entanto não se consegue pensar de outra maneira hoje. há maldições que parece que foram postos os seus ovos antes de nos deslocarmos no espaço. (...) enrolo-me no próprio miocárdio, como se tivesse a enrolar um cigarro. num gesto de quem se absorve a si mesmo. como o ralo da banheira a chupar a água, as vísceras e os pulmões a descerem centrípetos cano abaixo. era suposto ser verão, eu sei, mas hoje fez uma grande trovoada alcóolica dentro do crânio, (do gólgota em aramaico, mas eu preferia usar a expressão "dentro das quatro paredes da minha cabeça").
é a lua a bater-me no estore da janela, a chamar-me...

10.8.03

atmosfera

um entardecer bonito, um crepúsculo de antidepressivos. paliçadas de lapiz gigantes. os sonhos aquartelados. a esplanada, o vale logo ali a praia. caranguejos gigantes a sair da água, com velas às costas, windsurfistas crustáceos. o mar parado a olhar, com uns olhos profundos como a morte. um fenómeno atmosférico, teatral, cinéfilo, por cima.
é tão distante o país da purificação...

7.8.03

o valor da raça

como vivo junto ao chão tenho por hábito ser surprendido por bichos esquisitos que deambulam. tenho que os matar. não é que os queira ou sequer possa exterminar aqueles insectos todos. mas não posso permitir que um bicho faça de mim a sua encruzilhada.
junto ao chão também se locomove uma senhora com esclerose que conheço. na praia, se não tem ninguém que a ampare para ir à água, vai de gatas. viver assim, com as limitações de uma doença degenerativa, e mesmo assim continuar a lutar. continuar nestas condições, que coragem...
perante um exemplo destes só posso sentir vergonha. eu, que sou saudável mas que desisto de tudo com tanta facilidade. uma pessoa que encara a decrepitude assim só pode ser de uma raça superior...

6.8.03

morte em pleno verão

no entanto a praia, essa generosa molécula onde nos encontramos com o nosso oceano.
as pessoas morrem mesmo. metidas nas suas crisálidas de madeira. evaporando as suas presenças aos altíssimos céus de agosto.
no entanto a praia, essa grande molécula tão viva.
(...)
o funeral realizou-se ao fim da tarde. o corpo teve na igreja do cartaxo, depois foi para a igreja de vale paraíso e foi a enterrar no cemitério da mesma aldeia. era irmã do meu avô. mal a conhecia. o que é indiferente.

5.8.03

fluxo

o fluxo contínuo dos mortos. de regresso à terra. a matéria transitoriamente viva.os mortos absorvidos por buracos no chão. como água a desaparecer por fendas na argila ressequida.

3.8.03

recordação do incêndio

o jardim do fogo, onde as borboletas batem asas até queimar, colunas de fumo sustêm o céu,
um desenlace teatral, com a noite carbonizada, os ossos de fora, a carne incandescente das montanhas, em brasa, a palpitar beleza,
a grandiosidade do terrível descontrolo.
as chamas a subirem, a subirem, chupando o oxigénio todo.
o deus dragão, os espíritos dentro das labaredas,
o obsoluto fascínio por todas as coisas que ardem, essa combustão bela da natureza.

quando há um incêndio pelo menos acontece alguma coisa que se veja.

2.8.03

o sorriso acrí­lico

uma nave fabril de costelas arruinadas, há um duende morto que se deitou hoje na minha cama. a inconsciência, o calor demais, o céu vai-se rachar de alto a baixo,
o céu vai-se rachar como garrafas misantrópicas
a cabeça como uma península.
e o sorriso acrílico nela.